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terça-feira, 9 de agosto de 2011

A ironia é elitista

O humor é, em geral, um traço humano estimado. Em primeiro lugar faz a gente rir, o que é bom para alma e corpo. Azeita contatos no dia a dia, constrói amizades, decide escolhas afetivas: entre sair para jantar com uma pessoa espirituosa ou uma tapada para o humor, só um louco escolheria a segunda opção. “Não há nada como um vislumbre de humor para nos assegurar que um semelhante humano pulsa dentro de um estranho”, fulmina Eva Hoffman (muito prazer), diretamente do livro de citações.

É claro que pessoas completamente desprovidas de humor são raras, se é que existem. Uma criatura assim imune à graça não deve rir de absolutamente nada: nem de palhaços nem de políticos, nem de piadas velhas nas escolinhas da TV nem do escorregão acrobático que um estranho leva na rua. Ou de desgraças piores. O humor, embora aparentemente compartilhado por primatas e alguns contadores, é um dos traços que definem o humano. Romain Gary o chama de “afirmação de dignidade, uma declaração da superioridade do homem sobre tudo o que o lhe acontece”. Ora, todo mundo é humano, logo, todo mundo tem algum tipo de humor.

Quando dizemos que uma pessoa não tem humor, o que queremos dizer é: “Essa pessoa não tem o meu humor, o humor dela não afina com o meu”. Do que você ri, eis a chave de tudo. “Dize-me do que gargalhas e te direi quem és”, ensinou Alexandre de Samotrácia.

O riso é um mecanismo de seleção. Une as pessoas, mas também as separa. Quanto menos física se torna a comédia, quanto mais se afasta do pastelão e da careta na direção do outro extremo do arco, o espírito puro, o wit, a ironia fina, mais gente exclui do seu campo. Passa a depender pesadamente da linguagem e exige um grau de domínio de meios de expressão e referências culturais – e até uma certa predisposição ideológica para captar “a mensagem” – que costumam vir associados a uma boa formação educacional.

Se no Brasil a área de exclusão é maior do que a média internacional, a boa ironia é elitista em qualquer língua. Claro que a chalaça é banda larga: num extremo fica o policial que diz “Bonito, hein?” para o batedor de carteira que prendeu em flagrante; no outro, O alienista de Machado de Assis. Esopo, aquele das fábulas, deixa claro de que lado do espectro está quando condena a ironia grossa: “Zoação pesada não é brincadeira”.

Ser sutil pode ser necessário aos espirituosos, mas é também um perigo. Multidões não pescam ironia. Não pescaram nem quando Luis Fernando Verissimo, lulista emérito, se fez de indignado por ver desperdiçarem um precioso Romanée-Conti no paladar de um reles operário. Turbas de petistas queriam esganar o pacato escritor. E o problema maior nem é esse. Ao se defender, alegando que quis dizer o contrário do que disse, que a isso chamam ironia e tal, o irônico irrita ainda mais quem já estava furioso com ele. Agora o sujeito se sente escalado no papel de palhaço: a piada que uma pessoa descobre não ter entendido sempre lhe parece feita também às suas custas.

Talvez seja por envolver tanta complicação que o humor tem um status cultural ambíguo. Para encerrar com o mesmo livro de citações (de Ehrlich e De Bruhl) que venho pilhando desde o início da crônica: “O mundo gosta de humor, mas o trata com condescendência. Condecora os artistas sérios com louros e os espirituosos com couves-de-bruxelas”, diz E.B. White. Couves-de-bruxelas que são, claro, humor da melhor qualidade.


http://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/cronica/a-ironia-e-elitista/

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